Ritchie escreveu Menina veneno em 1983, bem antes de a
internet se tornar popular. Mas a letra prova que ele era um artista a frente
do seu tempo. É como se ele tivesse viajado no tempo direto pra uma
quinta-feira do ano 2000, se conectado a internet, dado aquela navegada e
depois voltado à década de 80 para presentear a humanidade com este grande hit
da MPB.
Vamos à análise.
Meia-noite no meu quarto, ela vai subir
ouço passos na escada, vejo a porta abrir
um abajur cor de carne, um lençol azul
cortinas de seda, o seu corpo nu
ouço passos na escada, vejo a porta abrir
um abajur cor de carne, um lençol azul
cortinas de seda, o seu corpo nu
Logo de cara temos a evidência. Tanto pelo horário (naquela época as pessoas
esperavam a meia-noite para se conectar, pra pagar o pulso único da linha
telefônica) quanto na situação de perigo. Os passos na escada, a porta que se
abre, ainda não é a menina do título, mas sim a mãe (ou como no caso da tirinha, o pai), a dona da casa. Boa noite, meu filho, vou me deitar, televisão me dá um sono. Boa noite mãe.
Logo em seguida temos uma dica da qualidade técnica do material da época:
abajur cor de carne. Isso não existe. A qualidade dos monitores CRT 15” da época (provavelmente
usando aquelas telas pra diminuir o brilho), mais a baixíssima qualidade da
foto (pra carregar mais rápido, ainda nem se pensava em vídeos) obrigam o autor
a adicionar uma cor ao círculo pra tentar descrever o que ele via na foto.
Menina veneno o mundo é pequeno demais para nós dois
em toda cama que eu durmo
só dá você.
em toda cama que eu durmo
só dá você.
Aqui temos uma bela demonstração do romantismo de Ritchie, perceba o que ele
faz. Ele pega a sensação de solidão de estar navegando sozinho por um mundo
desconhecido (internet), mais a sensação de singularidade da época (você só
conseguia apreciar uma coisa de cada vez, não existiam abas nos navegadores, não
dava pra gastar banda carregando a próxima foto) e transpõe isso em palavras. E como só
cabe um, ele cede espaço a moça. Isso é poesia pura.
Seus olhos verdes no espelho,
brilham para mim
seu corpo inteiro é um prazer
do princípio ao fim*
brilham para mim
seu corpo inteiro é um prazer
do princípio ao fim*
A chave aqui está em “do princípio ao fim”. Essa sensação de continuidade,
de algo separado em fases, Ritchie extrai da espera pelo carregamento completo
da foto. Hoje você clica numa foto e pronto, ela está ali. Antigamente você ia
vendo linha a linha, existia um começo, um meio e um fim.
Sozinho no meu quarto
eu acordo sem você
fico falando pras paredes
até anoitecer
eu acordo sem você
fico falando pras paredes
até anoitecer
Aqui é muito óbvio. Acordo sem você: não existe mais internet, é só até as
6h. Ele precisa passar mais um doloroso dia até a próxima madrugada.
(bons tempos...) |
Menina veneno,
você tem um jeito sereno de ser
em toda noite no meu quarto
vem me entorpecer
me entorpecer.
você tem um jeito sereno de ser
em toda noite no meu quarto
vem me entorpecer
me entorpecer.
Aqui o negócio começa a ficar sério: Ritchie se apaixonou pela moça. Dois
dias e ele já caiu. Ao descrever o jeito sereno da moça ao e usar o termo
“entorpecer” (popular entre os drogaditos), nosso amigo já está viciado na
droga do amor (auto-amor).
Você vem não sei de onde
eu sei, vem me amar
eu nem sei qual seu nome
mas nem preciso chamar
eu sei, vem me amar
eu nem sei qual seu nome
mas nem preciso chamar
Eu nem sei qual seu nome, essa é fácil responder: o nome dela é
picture001.jpg. Mas nem preciso chamar pode demonstrar um possível
vacilo do cara: ele colocou a foto da menina como página inicial. Ou talvez
pior ainda: papel de parede.
Um visionário, sem dúvida nenhuma.
* Sobre o trecho “do principio ao fim” (que é “do principio ao SIM”)
existe um comentário no post que descreve muito bem o possível erro do autor
e uma justificativa interessante. Veja:
Só uma correção, felipe.
O verso é “do princípio ao sim”. Mas sua análise continua valendo, porque o “sim” aí é só uma brincadeira poética com o “fim”. E digo mais. O “sim” também é parte do código binário (sim/não ou 1/0), que rege a internet. Ritchie mais uma vez à frente do tempo.
(Via Ulisses Mattos)
[nota pessoal: quando Ritchie disse “do principio ao sim”,o
“sim” nada mais era que a confirmação de fechamento do navegador ou pra confirmar a desconexão da internet, o que seria menos mirabolante nesse caso, enfim...]
No momento vídeo de hoje, nada mais justo que o vídeo que esse
mestre visionário compôs num momento de inspiração impar! A música simplesmente
épica “Menina Veneno” (acompanhe a letra se quiser)!
Espero que tenham curtido esse primeiro post de analise
musical, a próxima música eu mesmo analisarei e postarei. Conto com a ajuda de vocês
para que isso seja constante aqui no blog. Até a próxima mãedaphocas! #V